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“Acidente com o Césio é tratado como tabu e ninguém o insere na história da cidade”

Gore e trash, obra dos goianos rememora, com muito terror ficcional, um dos episódios mais trágicos da história de Goiás

Fonte: Jornal Opção

Os produtores da HQ destacam: "Não estamos ridicularizando nenhum dos envolvidos no acidente, em momento algum, e não ignoramos a triste memória da população acerca do acidente” | Arte de Rodrigo Spiga

Ademir Luiz & Sarah Cabral
Especial para o Jornal Opção

Em 2017, o acidente radiológico com o Césio-137, ocorrido em Goiânia, completa 30 anos. Partindo desse trágico evento real, o roteirista Ronaldo Zaharijs e os artistas Eduardo Menna e Rodrigo Spiga lançaram, no dia 13 de janeiro (uma sexta-feira 13!), o romance gráfico "137”. A obra é uma ficção de terror que solta a criatividade para imaginar quais efeitos colaterais a radioatividade poderia ter gerado na população goiana, particularmente nos moradores dos arredores de Abadia de Goiás, cidade vizinha à capital, onde se encontra o depósito — que deveria ser provisório e se tornou definitivo — dos rejeitos radioativos. A HQ foi patrocinada pela plataforma de crowdfunding, ou financiamento coletivo, Catarse, e publicada pela Editora Contato Comu­ni­cação. Para falar dessa obra gore e in­tencio­nalmente trash, entrevistamos Ro­drigo Spiga, primeiro desenhista da HQ e res­ponsável pela capa, e Ronaldo Zaharijs.

Ademir Luiz – A narrativa do romance gráfico se passa nos arredores da cidade de Abadia de Goiás, onde fica o depósito dos rejeitos radioativos do Césio-137. Para desenhar os ce­ná­rios houve uma pesquisa no lo­cal?

Rodrigo Spiga – Houve um estudo do local, da aparência geral da região rural imediata à Abadia de Goiás; porém, o local onde a história se passa, o sítio da família do personagem Sérgio, é fictício. O conceito do lugar foi feito especialmente para ambientar e climatizar a história de acordo com o necessário para o tema da história.

Ademir Luiz – O acidente expôs os goianos ao preconceito pelo país e afora. Consideram que a HQ que estão produzindo, que sugere que a radioatividade provocou mutações nos habitantes de Abadia de Goiás, pode contribuir para a manutenção desse estereótipo?

Rodrigo Spiga – Dificilmente. O que acontece aqui é apenas o uso da história do estado para a produção de uma história fictícia, e normalmente o leitor en­tende este tipo de coisa. Na história, os mu­tantes têm caráter tão absurdo que a his­tória ganha ar cômico, é mais uma brincadeira com o estereótipo caipira do que com o próprio acidente com o Cé­sio-137, e o leitor tem de estar aberto a es­te tipo de assunto. Além do mais, te­mos o próprio brasão da cidade de A­ba­dia de Goiás, brincando com o fato do de­pósito de lixo radioativo estar lá: carregam o símbolo radioativo junto a uma vaca.

Ademir Luiz – Em "O massacre da serra elétrica” temos uma família disfuncional com membros que, apesar de tudo, fazem as refeições em comum e, de alguma maneira, se importam uns com os outros. Jason, em "Sexta-Feira 13”, e Michael Myers, em "Halloween”, são personagens estabelecidos por preceitos freudianos. Os mutantes de seu romance gráfico não apresentam traços de humanidade, são basicamente máquinas de matar. Não dar-lhes nenhuma complexidade, nem pessoal nem na relação entre eles, foi consciente? Se sim, por quê? Consi­derando que a tendência atual é problematizar o mal, como aconteceu em obras como "Malévola” e "Drácula, a História não contada”.

Rodrigo Spiga – O "137” é diferente desses filmes citados. Se aproxima mais de a "Viagem Maldita” e "Pânico na Flo­resta”, pois os protagonistas aqui são os sobreviventes e não os assassinos. Isso nos deu a liberdade para explorar os personagens nessas situações extremas citadas na pergunta. Os mutantes são sim máquinas de matar, mas isso visto pelos olhos das vítimas. Eles podem ter relações familiares, podem ter profundidade, mas isso as vítimas não têm como saber e pouco nos interessaria demonstrar. Os mutantes apenas aparecem acompanhados pelas vítimas e o enquadramento dessas cenas sempre é escolhido a ponto de priorizar esse ponto de vista. Por isso a escolha de não mostrar hora alguma qualquer tipo de relação en­tre os mutantes, inclusive nunca confirmar se eles são mutantes, ou se eles fo­rem mutantes, se surgiram pelo fato de o de­pósito de lixo radioativo estar ali. Lem­bramos que quem falou isso foi um personagem de ideias questionáveis: Miguel.

Do nosso ponto de vista, esses "mutantes caipiras radioativos” podem muito bem ser seres humanos perfeitamente normais com uma aparência um pouco detestável e com um paladar diferenciado. Poderíamos problematizar o mal, mas não nos interessa, isso tira a graça de uma história de premissa simples. Tudo o que o leitor precisa saber é que esses ditos mutantes tiveram fome e tiveram a sorte de ter um grupo de jovens passando por ali, quiseram os comer e comeram, isso para não haver a chance de serem confundidos com os mocinhos, como acontece nesses dois filmes citados na pergunta, o vilão perde seu poder, não é mais vilão, é apenas um ser incompreendido pela grande maioria das pessoas. Isso nos tira o "fazer pela vontade de fazer”, que é o "mal pelo mal”, a "ação pela ação” etc.

Sarah Cabral – "137” é a adaptação de uma das maiores tragédias ocorridas em Goiás. Geralmente, as obras de ficção que trabalham esse tema procuram ser realistas, mas vocês optaram pelo fantástico. Sendo assim, como foi o processo de concepção da narrativa da HQ, em que é ignorada toda a triste memória da população acerca do acidente e apresentada uma versão ficcional com direito a mutantes e "cozido de carne humana”? A inspiração para a criação veio por onde? Cinema? Livros?

Rodrigo Spiga – Primeiramente, a "137” não é a adaptação do ocorrido, apenas introduzimos o acidente com o césio na história do próprio estado, o que muitas pessoas o esquecem de fazer; esse acidente por aqui é tratado como tabu, ninguém o insere na história da cidade. Nós o inserimos e ele trouxe certas consequências para algumas pessoas. Infe­lizmente, em nosso mundo ficcional, para algumas pessoas, como os mutantes, as consequências foram maiores. Não estamos ridicularizando nenhum dos envolvidos no acidente em momento algum e não ignoramos a triste memória da população acerca do acidente; temos a personagem Cintia para nos lembrar das consequências.

Ronaldo Zaharijs – A inspiração veio principalmente do cinema. Filmes anteriores à era em que se você não problematiza ou dá explicação para tudo, você está sendo um mau artista.

Sarah Cabral – Sabe-se que o período entre a criação até o "produto final” da obra é bastante extenso e, por muitas vezes, o processo é tido com muita interferência e mudanças. A respeito disso, como se dá a relação da produção visual da história com a ideia original da obra? O peso autoritário de um roteiro a ser seguido tem regido a obra ou, conforme a obra vem se desenvolvendo, a história vem seguindo outros caminhos até então não imaginados?

Rodrigo Spiga – Nós temos o período do projeto em que a figura do roteiro vai lentamente sumindo e virando a figura do quadrinho, e todas as imagens, ações e falas são um só; esse é o sinal de um projeto bem executado, quando não sentimos a figura do roteiro no quadrinho – assim como no cinema. Nesse período, temos a produção visual, seja em forma de rascunhos, "rafes”, layouts, conceitos de personagem e de cenário, decupagem do próprio roteiro. É nesse período em que as mudanças acontecem, as mudanças de história, para que a leitura possa fluir mais perfeitamente. Os cortes e adições de cenas, a definição do "timing”, tudo isso é feito nessa etapa, e é essa etapa que é cercada de mudanças no roteiro base.

Ronaldo Zaharijs – O peso autoritário do roteiro no quadrinho quase sempre é ruim quando são pessoas separadas que executam as etapas de produção, que são poucas, geralmente duas. O ilustrador cria as sequências visuais a partir do zero, as imagens a partir do zero, a partir do momento em que o roteiro já dita por base de regra enquadramento, definições de cena etc. Assim, corta a ação criativa do ilustrador. Então, foi decidido eliminar esse peso autoritário na obra, e há mu­danças de ambos os lados sempre que se fazem necessárias.

Sarah Cabral – A ideia por trás de uma obra artística, independente de qual seja a sua forma a ser materializada, frequentemente será questionada quanto a presença de um significado subjetivo afim de categorizar a obra como arte ou não. Dentro da história em quadrinho, é possível distinguir duas obras: a história da obra narrada versus a obra dramatizada em imagens. Considerando isso, foi desejado que a obra tivesse uma subjetividade? Ou haveria uma ausência de significado abstrato, que caberia ao leitor encontrá-lo ao acaso e elevá-la ou não à condição de arte?

Rodrigo Spiga – Primeiramente, o qua­drinho não pode ser dividido em "o­bra narrada” e "obra em imagens”; tudo deve ser um só, pois as imagens contam o que você vê e as palavras comumente o que se ouve. Mas acaba por aí a divisão, já que o produto deve ser um só. E, nisso, entra a liberdade e necessidade de se materializar personalidade em forma de falas, faladas e não escritas. Muitas vezes, se não na maior parte das vezes, é necessário ignorar a gramática, assim como ignoramos no momento em que falamos, muitas das vezes, claro. A subjetividade no quadrinho pode ser encontrada em diversos níveis, como dito na pergunta cabe ao leitor querer identificar isso, estamos seguros que fizemos essa "arte” mencionada, seja na composição visual, nos enquadramentos, na forma de se seguir a narrativa visual, no apelo em forma de história em conjunto ao falado. Elevar esta obra a arte cabe somente a sua forma de conceituá-la, não exatamente ao que fizemos ou deixamos de fazer.

Ademir Luiz é professor da graduação e pós-graduação da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e Sarah Cabral é acadêmica de Arquitetura e Urbanismo na mesma instituição

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